A Amiga...
Após fechar a porta da sua casa, Inês suspirou. Já há algum tempo que não se sentia assim. O seu coração não parava de bater rapidamente com a emoção do encontro que tinha tido naquela noite. Desde o beijo de despedida, que ela não conseguia deixar de pensar nele. Ela não sabia como é que ele tinha conquistado o coração dela em tão pouco tempo.
Não há muito tempo, ela tinha jurado que nunca iria deixar que outra pesssoa chegasse tão próxima dela e a magoasse novamente. Mas Pedro tinha conseguido aos poucos convencê-la de que ele era diferente dos homens com que ela tinha estado no passado.
Ela começou a recear que se ele soubesse o passado dela, os sentimentos dele iriam mudar. Por um momento passou-lhe pela cabeça a ideia de que se ele gostasse mesmo dela, o seu passado não iria importar. Mas depressa voltou à realidade e decidiu que por mais que lhe custasse esconder algo dele, caso o não fizesse, ele iria deixá-la num piscar de olhos mesmo antes da relação começar.
Era um pequeno preço a pagar pela sua felicidade. E tomou a decisão de lhe contar tudo, quando estivessem juntos há mais tempo e isso já não iria causar qualquer problema entre os dois. Mas até esse momento, iria fazer tudo para que ele nunca soubesse nada. E isso incluía esconder coisas dele.
Inês cedo tinha aprendido que a vida não era um mar de rosas. Apesar da sua tenra idade, já tinha passado por muitas coisas que possivelmente pessoas já muito mais velhas nunca iriam passar. Ela tinha muita vergonha do que tinha feito e quanto menos pessoas soubessem, melhor seria para ela.
Logo após ter tomado essa decisão, Inês começou novamente a pensar em Pedro. Era algo que não conseguia parar de fazer, mesmo se quisesse. E ela não o queria, pois sentia-se invadida por uma sensação tão estranha, que só poderia ser o amor. E tinha que partilhar o que sentia com alguém.E esse alguém, apenas podia ser a Rita.
A Rita era a sua melhor amiga. Tinha-a conhecido na secundária há cerca de seis anos. Ainda se lembrava do dia em que a tinha encontrado. Desde sempre que Inês tinha sido uma rapariga muito sociável e que era sempre a alma do grupo dela. Ela foi sempre o centro das atenções, não só por causa da sua beleza latente mas também por causa da sua personalidade. Por seu turno, a Rita era uma rapariga que primava pela descrição e parecia deslocada no meio da turma. Ela era uma rapariga nova na escola que tinha sido transferida de uma escola em Aveiro, donde se tinha mudado com os pais e a irmã para Lisboa. E por esse motivo, não conhecia ninguém na escola, e não parecia integrar-se no resto da turma ao fim de duas semanas de aulas. Ocasionalmente, alguém metia conversa com ela, mas ela parecia não querer criar laços com ninguém.
Inês lembrou-se da primeira impressão que tinha tido dela. Era uma rapariga muito tímida, que se vestia muito discretamente e que procurava não dar muito nas vistas, apesar dos seus enormes cabelos louros. Era uma rapariga que qualquer rapaz consideraria engraçada, mas nada mais do que isso. A ideia com que tinha ficado das primeiras semanas de Rita na escola, era de que ela era uma rapariga muito mimada pelos pais e que se achava superior às outras pessoas da escola. Tinham corrido rumores de que ela vinha de uma família com algumas posses e que tinha vindo de um colégio privado com elevada reputação e distinção. E o facto de não se querer integrar com o resto da turma apenas reforçava essa ideia.
Por seu turno, Inês era a rapariga mais popular do ano dela. No último ano, o seu corpo tinha-se desenvolvido muito rapidamente e tinha-se tornado o olhar de todos os rapazes da turma dela, incluindo os comprometidos. E tinha-se tornado a inveja de todas as raparigas, que se sentiam incomodadas pela enorme atenção que todos os rapazes dedicavam a ela. Mas mesmo assim, ela andava sempre rodeada do seu grupo de amigas que a acompanhavam desde a preparatória. E nunca pensaria em incluir Rita nesse grupinho.
Mas um dia, a professora de Psicologia decidou dividir a turma em grupos de dois, para fazer um trabalho sobre a influência dos genes na personalidade das pessoas. E acabou por juntar a Rita com a Inês, esperando que aquela aluna que estava sempre calada e quietinha nas aulas espevitasse um bocado ao passar algum tempo com a rapariga mais irrequieta da turma e que estava sempre a interromper as aulas, pois do início ao fim estava sempre a sussurar com a colega do lado. Inês, logo após a professora a ter juntado à Rita, pensou que com tantas pessoas naquela turma, ela tinha logo que juntá-la a uma rapariga que não tinha nada a ver com ela e que insistia em se manter afastada do resto da turma.
Após o fim da aula, a Rita foi ter com Inês, para combinar onde iriam fazer o trabalho. Ambas decidiram que o melhor seriam encontrarem-se na biblioteca à tarde para pesquisarem para o trabalho.
Quando Inês chegou ao local combinado um quarto de hora atrasada, já a Rita tinha colocado em cima da mesa de trabalho quatro ou cinco livros de Psicologia, a maioria dos quais de psicólogos com nomes impronunciáveis. Inês pensou logo que estaria na presença de uma daquelas pessoas que dava muita importância ao estudos e que não se importava com mais nada. Pediu desculpa pelo atraso e começaram as duas a percorrer os livros, à procura dos capítulos que tinham a informação necessária para o trabalho delas. Foram praticamente duas horas de quase silêncio, apenas interrompido por algumas piadas de Inês, que não obtiveram qualquer reação por parte da sua colega. A Rita praticamente não disse qualquer palavra durante a tarde toda, tirando as respostas a algumas questões que Inês ia colocando. Após terem tirado fotocópias daquilo que lhes interessava, combinaram que no dia seguinte se iriam encontrar outra vez, desta vez na casa da Rita, para redigir o trabalho.
Durante a noite, Inês telefonou a uma das amigas do seu grupinho, a dizer que nunca tinha tido uma seca tão grande e que a sua colega de trabalho era uma das pessoas mais chatas e fechadas que tinha conhecido. Não tinha ficado com uma boa impressão dela e apenas queria terminar o trabalho o mais depressa possível para não ter mais qualquer contacto com ela.
No dia seguinte, após o almoço, Inês foi para a casa da Rita. Ficava numa zona de vivendas, a mais fina da cidade. Tocou à porta e foi atendida pela empregada que a convidou a esperar um pouco na sala, enquanto ia chamar a Rita. Inês deu uma vista de olhos rápida pela sala e reparou que parecia uma daquelas fotografias que se encontravam naquelas revistas de decoração das casas de pessoas famosas. Percebeu logo que a Rita vinha de uma família com posses e que seria esse o motivo para não se querer misturar com os colegas. Entretanto a Rita chegou e sugeriu-lhe irem para o quarto dela. Quando lá chegaram, Inês surpreendeu-se imenso. Ao contrário da exuberância do resto da casa, o quarto dela pautava-se pela simplicidade. Era um quarto que primava pela arrumação, sem nada fora do sítio, com uma pequena televisão e onde se destacava um enorme poster dos Backstreet Boys. Sentaram-se na secretária dela, onde já lá estava um computador portátil e algumas folhas impressas da Internet com mais alguma informação que Rita devia ter pesquisado durante a noite passada.
De início, decidiram que seria a Rita a escrever no computador, uma vez que Inês era daquelas pessoas que nunca conseguiria um emprego como secretária, pois era impossível existir alguém que teclasse mais lentamente do que ela. Começaram ambas a falar sobre o que tinham lido no dia anterior. A tarde passou devagar, não tendo sido tocado outro tema de conversa para além do trabalho. A Inês detestava falar só de trabalho. Achava que o trabalho em conjunto correria melhor se ambas estivessem mais descontraídas e menos formais e brincassem uma com a outra. Mas qualquer tentiva de quebrar o gelo era imediatamente recusada pela Rita que dizia que elas só se deveriam preocupar em acabar o trabalho. Este até estava bastante bom e faltava apenas o capítulo em que se tinha de dar a opinião pessoal sobre o tema. Inês perguntou à Rita o que ela achava do assunto ao que Rita ficou a reflectir por uns instantes antes de lhe responder.
- Eu não acredito que os nosso genes determinem a nossa personalidade. A nossa personalidade vai-se desenvolvendo à medida que o tempo vai passando e as pessoas mudam com o tempo.
- Mas tu não achas que as pessoas têm algumas características que herdam dos pais? – retorquiu Inês.
- Eu acho que a única coisa que herdamos dos nossos pais são as nossas características físicas: a cor do nosso cabelo, os nossos olhos ou o nariz. Mas não é pelo meu pai ou a minha mãe serem pessoas calmas, que eu também o vou ser.
- Eu não penso bem assim. Há certas pessoas que nascem tímidas e que nunca vão deixar de ser tímidas. Há certas características inatas que por mais que as pessoas tentem mudar, nunca o irão conseguir. Eu por exemplo, já nasci assim expansiva e faladora. Os meus pais sempre me disseram que desde bebé que era assim, e que sempre chamava as atenções de todos desde muito cedo.
- Eu também penso que isso é verdade. Mas isso não tem a ver com o que estamos a discutir. Tu estás a dizer que há certas características com que nascemos e que irão para sempre influenciar o que nós fazemos. Eu também concordo com isso. Mas eu acho que isso não se herda dos pais.
- Ao contrário de outras coisas... – disse Inês que detestava que as pessoas não concordassem com ela e estando já a ficar farta do tratamento algo frio da Rita desde o dia anterior.
- O que queres dizer com isso? – perguntou Rita com uma entoção que indicava que ela não tinha gostado do comentário.
- Vê o teu caso. Nota-se que os teus pais são ricos. Eles devem-se achar melhor do que os outros. E tu pelos vistos estás a seguir o mesmo caminho.
- Estás completamente enganada. Vê-se que tu não me conheces mesmo nada.
- Ai não? Então porque é que estás sempre afastada do resto das pessoas da nossa turma e mal lhe diriges uma palavra? Só pode ser pelo facto de achares que ele não merecem que lhes digas alguma coisa.
A dicussão estava a ficar cada vez pior. Mas Rita decidiu por um termo ao rumo que a conversa estava a tomar. Ela era uma pessoa calma e pacífica por natureza e não estava interessada em discutir mais.
- Se tu e todos os outros acham isso, então estão no vosso direito. Cada um é livre de pensar o que quer. Mesmo que estejam completamente errados.
- Não acredito em ti. Estás agora a fazer de coitadinha. – disse Inês, que nunca foi uma pessoa que deixasse as coisas a meio. – Prova-me o contrário. Tu nunca mostraste abertura para com os outros e sempre que eu tentava falar contigo com outra coisa para além do trabalho, tu não me ligavas. Diz-me lá então como é que eu estou enganada.
Rita hesitou antes de dizer qualquer coisa. Por um momento, ela pensou no que lhe iria responder. Não queria dizer a ninguém o que realmente passava pela cabeça. Muito muito menos a alguém como a Inês, que não era minimamente amiga dela.
- Tu nunca irias compreender. – suspirou com um ar de resignação.
- Experimenta-me.
- E ainda por cima, achas que eu iria contar alguma coisa à rapariga com a maior boca da escola? Se eu te dissesse alguma coisa, amanhã já todos saberiam disso.
- Agora vê-se que és tu que não me conheces. Se soubesses como eu sou, saberias que sou alguém em que toda a gente confia. Eu sou incapaz de mentir ou de trair a confiança de alguém.
- Não é o que parece. A imagem que passa de ti é de alguém que não tem qualquer preocupações com o futuro e que está disposta a fazer tudo para ter o que quer. Nem que isso implique perder a amizade de alguém, se isso permitir que mais pessoas passem a gostar de ti. Só queres ser popular, independentemente do que os outros possam sofrer.
- Eu não sou assim. Podes perguntar a qualquer amiga minha.
- Amigas tuas? Achas que elas gostam a sério de ti? Elas só andam contigo para aproveitarem a tua popularidade. Pelo menos, são os comentários que tenho ouvido das outras pessoas.
- Ai é? Também já deves ter ouvidos os comentários muito elogiosos que toda a gente faz a ti desde o dia em que chegaste à escola – disse Inês com uma voz muito irónica.
- Não, não ouvi. Mas imagino o que devam dizer. Mas não me importo nada com isso. Nunca me preocupei com as aparências, ao contrário de muitas pessoas.
- Espero que não te estivesses a referir-te a mim. Pois eu acho que tu também estás a julgar-me pelas aparências e a imagem que construíste de mim, e não pelo que eu sou na realidade.
- Talvez estejamos as duas a cometer o mesmo erro. – reconheceu Rita, já com algumas lágrimas nos seus olhos. Ela foi sempre um pesssoa que apesar de ter sofrido muito por dentro, sempre tentou nunca demonstrar aos outros qualquer fraqueza. Mas neste momento, não estava a conseguir guardar as emoções só para ela e começou a chorar.
Inês sentiu que estava no dever de tentar confortar a sua colega, pois as lágrimas não paravam de fluir dos olhos azuis que tinham agora um brilhozinho. Mas apercebeu-se que não tinha sido só a discussão que tinham tido que tinha provocado esta situação. Deveria existir algo mais que justificasse não só a atitude de Rita nesta tarde, mas a atitude dela desde que veio de Aveiro. Passado cinco minutos, a crise de choro tinha terminado, mas os olhos de Rita demonstravam que ela ainda estava muito perturbada com a situação.
- Peço desculpa por esta cena – disse Rita aos soluços.
- Não faz mal. Eu é que peço desculpa por te ter feito chorar.
- Inês, não foi culpa tua. Eu não estava a chorar pelo que me disseste. Mas a conversa que estávamos a ter, fez-me lembrar de uma coisa no passado que me causou muita dor e que eu estou a tentar esquecer há algum tempo. Mas de repente voltou e eu não consegui evitar chorar.
- Rita, eu sei que nós não somos amigas, mas parece-me que estás a precisar de desabafar com alguém. Parece que estás a carregar o peso do mundo nos teus ombros. Eu sei que tu já tens uma imagem de mim que se calhar não vais conseguir mudar, mas eu posso garantir-te que podes confiar em mim. Tens todo o direito de não o fazer, mas se não queres que os outros te julguem pelas aparências, eu peço-te que não faças o mesmo a meu respeito.
- Não é por ti, mas por mim. Eu não sei se te consigo contar. Eu já percebi que provavelmente fiz uma imagem de ti que não corresponde à realidade. Mas eu não sei se....
Inês interrompeu-a a meio e pôs a sua mão no ombro da sua colega.
- Tu não tens de me contar nada se o não quiseres. Todos temos os nossos segredos, muitos dos quais não revelamos aos nossos melhores amigos. Eu também já passei por muita coisa, mas cheguei à conclusão que há coisas que temos de guardar para nós.
Rita ficou em silêncio uns minutos, antes de decidir revelar o que tinha acontecido com ela no passado. Inês ouviu a história e começou também a chorar, pois sentiu uma grande empatia com a sua colega. Inês soube que a família da Rita tinha vindo de Aveiro de Lisboa apenas por causa dela, para se afastarem do local onde tudo se tinha passado.
Ela começou a perceber por que motivo Rita tinha manter-se afastada dos seus colegas desde que tinha chegado. Também ela achava que seria difícil para alguém que tivesse passado por aquela situação, que conseguisse confiar novamente nos outros. Mas decidiu que iria fazer todos os esforços para ajudar Rita a superar aquela fase em que se encontrava. Antes de lhe contar qualquer coisa, Rita apenas pediu a Inês que não tivesse pena dela. Mas no final, não era pena que Inês sentia pela sua nova amiga. Era um grande orgulho pelo esforço que Rita tinha feito para ultrapassar a tragédia que a tinha afectado no passado e pela força interior que ela tinha demonstrado, pois muitas outras raparigas na situação dela teriam caído numa depressão da qual seria difícil saír.
Foi nessa noite que surgiram os laços de confiança entre as duas que permaneceram até hoje. E Inês pensou que teria sido muito difícil ultrapassar as dificuldades que tinha tido ainda há pouco tempo, sem o apoio da sua amiga...
Mas pelo menos hoje tinha boas notícias para partilhar...